The Idea of South

 

“The Idea of South” é, naturalmente, um projecto de fotografia conceptual. Encerra todas as determinações temáticas da reflexão sobre o social, (Between, a série de retratos dos gestos quase vazios de expressão, de um quotidiano de insegurança banalizada que continua a inquietar estas nossas sociedades do sul, tão useiras da cumplicidade; Surroundings, esses lugares que são fluxos de dependência de periferias com frágeis infraestruturas de sobrevivência, Refuges, onde subjazem os últimos alentos de agregação e essa série polissémica dos colchões abandonados no que ficou do natural inhabitável ) e que evocam a forma perversa como as nossas pulsões se transformam em sublimações. São fotos que usam a cor sem exuberância, para que o excesso do real se imponha, fotografias lisas, directas, neutras, sem enfeite, informativas q.b., interagindo pela seriação organizada e que omitem a perspectica triangular, evitando cuidadosamente o sistema de fuga e oferecendo-nos a horizontalidade das coisas, horizontes e devaneios.

 

São, indiscutivelmente, sagazes argumentos em busca de audiência. É um projecto conceptualmente processado.

 

Hoje, a fotografia esclarece-nos que tudo o que realmente conta, a inovação, a arte, a revolução, a violência ou a diferença, acontece no território da informação. Aí, a fotografia gere a visibilidade do mundo e produz uma cultura de observatório com um sistema de desocultação onde as coisas, (esse mundo, esses rostos, esses efeitos visíveis  do tempo (e do modo) sobre a matéria) são, antes de tudo, idênticos à sua definição. Essa definição tem muito a ver com o saber acumulado pelas imagens. Talvez por isso mesmo estes rostos são acima de tudo máscaras, transitórias e identificáveis mas sucedâneos de um rosto ausente. No Sul, neste Sul onde o desleixo e a impunidade se erguem como imaginação e sabedoria, as máscaras de Bruno Santos ainda conservam alguma perplexidade, mas a ritualidade expressionista das convulsões dos sentimentos que o neo-realismo soube suspender, já tornou homogénea a definição.

 

“The Idea of South” escava então de forma mais profunda, ultrapassando o argumento, porque este também é um tempo de crise da fotografia e o corpo, sabemo-lo bem, é também produto da sua envolvente imediata. Reconstruímos em nós os referentes, o design  daquelas letras pintadas na caixa de correio do prédio periférico, a esplanada de um lazer adiado naquele Café térreo, o “terraço” definido pelas vigas sobre a carrinha abandonada, o tempo acumulando novos abandonos sobre os colchões degradados, a imensa banalidade destes restos de uma civilização insatisfatória – o Sul?

 

São imagens da doença do viver onde a saga dos  Ex-Dreamers  recoloca  a incúria dos nossos sonhos e a sua incapacidade em alicerçar a nossa persistência: os colchões, dispositivos maiores ou menores das nossas fantasias, do mesmo modo que os sonhos que aí construímos, pervertem-se no chão entregues ao poder destrutivo do tempo e do esquecimento.

 

A inquietação é uma palavra e um sentir que não se quer no pragmatismo artístico. O conceito de Sul é demasiado nosso, organicamente nosso. Neste rizoma de informação, onde a circulação da informação substituiu a deambulação, estes sintomas de margem também existem, mas no Sul a margem é também uma dobra da liberdade e da autonomia. São as tiras de cor laboriosamente pintadas no barraco, o colchão dobrado para servir de banco de jogatina, aquela garrafa de água preciosamente colocada ao meio das divisórias. No Sul, onde quer que se vá, onde quer que se esteja, constrói-se um território de alucinação. Foi o que fez Bruno Santos.

 

Maria do Carmo Serén